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Os Meus Nobel

Aqui encontra informação sobre a vida e a obra de grandes escritores, galardoados com o Prémio Nobel de Literatura ou não, minhas recensões de livros, textos de minha autoria e notícias literárias

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Vozes de Chernobyl

Vibarao, 31.08.22

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Comentário ao livro “VOZES DE CHERNOBYL” de Svetlana Alexievich

Svetlana Alexievich, filha de pai bielorusso e mãe ucraniana, é uma jornalista que desenvolveu o género literário de não-ficção conhecido por “romances de vozes” e lhe valeu ganhar o Prémio Nobel de Literatura de 2015. Usa uma técnica de colagem de testemunhos individuais, de que resulta uma escrita situada a meio caminho entre a literatura e o jornalismo. Esta técnica permite aproximar mais o leitor da substância humana dos acontecimentos descritos, levando-o a sentir-se um observador quase participante desses acontecimentos.

O primeiro livro onde utilizou esta técnica foi “A Guerra Não Tem Rosto de Mulher” de 1985, escrito a partir de uma série de entrevistas a mulheres russas que participaram na Segunda Guerra Mundial. Este género literário continuou a ser usual nas obras de Svetlana Alexievich, nomeadamente este “Vozes de Chernobyl” dedicado à terrível catástrofe que foi o desastre de ocorrido nesta Central Nuclear.

Para ajudar os leitores menos familiarizados com o desastre de Chernobyl a compreender melhor o que vão ler neste livro, permito-me fazer uma breve descrição do ocorrido. Na madrugada de 25 para 26 de abril de 1986, durante um teste de segurança à Central Nuclear de Chernobyl, situada no norte da Ucrânia junto à fronteira com a Bielorrússia, algo correu mal e desencadeou-se uma série de reações descontroladas no reator nº 4, que terminaram num incêndio que durou 8 dias e provocou uma gigantesca fuga de radioatividade para a atmosfera. Toda a região ficou inabitável, incluindo a cidade de Pripyat que havia sido construída nas proximidades para alojar o pessoal da central nuclear e suas famílias e tinha na altura quase 50 mil habitantes. Mas a radioatividade espalhou-se por ação dos ventos e atingiu praticamente toda a Europa, em maior ou menor grau. Calcula-se que os efeitos do desastre possam sentir-se durante 900 anos.

Ora, a beleza deste livro está em não ser um livro de História que narra o desastre e as suas consequências, mas sim um enorme trabalho de recolha de testemunhos daqueles que participaram no combate ou foram suas vítimas indiretas. Não há praticamente palavras da autora: a sua missão foi recolher, catalogar, ordenar e selecionar testemunhos, para resultar num texto literário coerente. Um texto composto por centenas de monólogos.

Disse a autora numa entrevista que o seu trabalho começou quando terminou o trabalho dos jornalistas e dos historiadores. Basta dizer que demorou 10 anos a recolher informação e entrevistou mais de 500 pessoas para escrever este livro, que só foi publicado em 1997, ou seja quase 11 anos depois do desastre. Svetlana falou com bombeiros, militares, técnicos, residentes das localidades vizinhas da Central, voluntários e familiares daqueles que, entretanto, morreram rapidamente por absorverem dores letais de radioatividade ou nos anos seguintes, vítimas de cancros e outras sequelas da sua participação no combate.

Torna-se evidente nos testemunhos que a grande preocupação do governo soviético foi tentar esconder o desastre e minimizar o impacto internacional quando tal se tornou impossível. Houve muita incompetência, muitos erros de gestão, muita falta de qualidade das próprias instalações da Central e uma errada forma de ataque ao problema, dadas as prioridades que já apontei. Muitos dos enviados para o local pelas autoridades foram autênticos Kamikaze enviados deliberadamente para a morte; à maior parte foi escondido tal facto, mas muitos deles sabiam ao que iam e aceitaram ir por patriotismo, por orgulho nacionalista, por fidelidade a um regime agonizante que os oprimia.

Nesta altura em que uma guerra se está a desenvolver na Ucrânia e há combates na zona de Chernobyl e de Zaporizhia, a maior central nuclear da Europa, este livro ganha uma nova atualidade e, espero eu, novos leitores. Os testemunhos plasmados aqui merecem ser relidos, meditados e ter ampla divulgação, para que não venhamos a ser vítimas de um desastre semelhante, se não maior do que o de Chernobyl.

 

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