Presunção e água benta
A minha mãe contava uma história que aconteceu há muitos anos com uma pessoa da nossa aldeia. Embora pareça inacreditável, jurava ser verdade e que tinha acontecido com uma pessoa sua parente afastada.
Genoveva era uma jovem pobre, filha e neta de criados de servir na agricultura. Guardou um rebanho de cabras durante toda a sua infância e juventude, exceto nos poucos anos que andou na escola, onde pouco aprendeu, porque parece que não era muito dotada.
Quando chegou à idade própria, casou com um rapaz da aldeia, que era também filho de gente pobre, mas, depois de fazer o serviço militar, conseguiu entrar na Polícia de Segurança Pública e mudar para a Polícia de Viação e Trânsito, por influência de um seu comandante da tropa que tinha sido nomeado para chefiar aquela corporação. O casal fixou residência em Lisboa, cidade onde ficava o quartel da PVT.
Naquele tempo, ganhava-se bem naquela função. Além disso, ainda se ganhava mais para fechar os olhos a coisas como um camião com peso a mais, circular em excesso de velocidade ou fazer uma ultrapassagem em local proibido. Já não falo em ter a carta de condução caducada, que isso dava direito a fechar muito bem os olhos e abrir ainda melhor a carteira. Certo é que deu para fazerem uma casa não muito grande na sua aldeia, mas de bom gosto, que fazia a inveja daqueles que conheciam o casebre onde Genoveva tinha nascido e sido criada e onde os seus pais continuavam a viver.
Genoveva tinha vergonha da sua origem e passava o tempo a alardear grandezas para a vizinha do lado, fingindo que era filha de “gente bem”, como se chamava lá na aldeia aos ricos, que não trabalhavam no campo e tinham criados para os servir. Dizia que os pais tinham muitas propriedades e muitos criados para trabalhar nelas. Com os rendimentos dessas propriedades, até já tinham construído uma bela vivenda, que lhes ofereceram para eles ficarem quando vinham à terra.
Dois anos depois do casamento, durante as férias, Genoveva e o marido trouxeram da capital o casal vizinho e amigo, para passar alguns dias com eles e exibirem a sua bela vivenda, claro.
Logo no primeiro dia após a chegada, Genoveva convidou os amigos para um passeio pelos campos, para lhes mostrar as propriedades que lhes tinha dito serem da sua família. Levou com eles o seu irmão, um pouco mais novo do que ela, mas avisou-o para não dizer que, na sua família, todos eram criados de servir.
Enquanto deambulavam pelos caminhos e veredas, ia fazendo perguntas ao irmão totalmente disparatadas para quem conhecia perfeitamente a vida no campo, sempre com o objetivo de impressionar os amigos.
– João, quantos hectares achas que tem esta propriedade?
– Deve ter aí uns 25 hectares – respondeu ele.
Mais adiante, voltou a perguntar:
– Como se chamam estas árvores?
– São carvalhos, já não os reconheces? – respondeu o João um pouco agastado.
O passeio continuou e o João estava a começar a ficar farto do questionário. Mas ela continuou com as suas perguntas:
– João, acho que esta é a fonte que o nosso avô construiu.
– Julgo que sim, pelo menos é o que diz a nossa mãe – respondeu ele já a ficar cansado do passeio imposto.
E o questionário continuou com perguntas do mesmo género. Ao passar por uma propriedade onde pastava um rebanho, Genoveva perguntou ao irmão:
-– Que bichinhos são aqueles, com uns pauzinhos espetados na cabeça?
João, que já estava farto de ouvir as parvoíces da irmã, respondeu:
– Aqueles?! São as cabras, sua parva! Guardaste-as durante quinze anos até ires para Lisboa e, em dois anos, até o nome lhes esqueceste?!...
A minha mãe terminava sempre as suas histórias com uma “lição de moral”. E esta era:
– Lá diz o ditado que “presunção e água benta cada um toma a que quer”.