Peregrinação
“Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto
Esta grande aventura de um português no Oriente constitui a primeira narrativa de viagens portuguesa. Fernão Mendes Pinto vai em busca de fortuna e regressa com histórias inconcebíveis para o imaginário ocidental daquele tempo. Que mundo é aquele da "Peregrinação"? Verdade ou ficção?
Fernão Mendes Pinto era um jovem de Montemor-o-Velho que decidiu embarcar para o Oriente à procura da fortuna que lhe escapava desde que foi para Lisboa ainda criança. A viagem, iniciada em 1537, iria durar 21 anos, um tempo de venturas e desventuras nos confins da Ásia, onde foi cativo 13 vezes o e vendido 17 vezes. Observou o que nenhum ocidental tinha observado antes e tudo relatou na primeira pessoa. Deixou para a posteridade a descrição de uma realidade exótica, com povos, culturas, paisagens e animais fantásticos.
A “Peregrinação” é uma narrativa dinâmica e colorida da presença portuguesa no oriente, com informações importantes sobre a história e a geografia de civilizações que, para os povos do Ocidente, estavam no domínio da lenda. Mas também não faltam episódios de crueldade, em que são feitas duras críticas à atuação dos portugueses naquelas paragens e à desmesurada ganância dos homens, tanto dos de cá como dos de lá. Assim, Fernão Mendes Pinto não se limita a narrar aventuras, mas explora as implicações morais e éticas das ações humanas.
A veracidade de alguns relatos foi, no entanto, posta em causa e o seu autor desacreditado e rotulado de mentiroso, tanto que se tornou popular o dito “Fernão, mentes? Minto.” No entanto, Fernão Mendes Pinto descreve as suas aventuras de forma tão detalhada que é difícil separar os factos da fantasia. Inclusivamente, ele apresenta datas, lugares, nomes de pessoas, de povos e de governantes locais.
Acredita-se que Fernão Mendes Pinto não tenha vivido todas as aventuras que descreve e estado em todos os locais que diz ter visitado nas suas deslocações. Provavelmente, terá construído alguns relatos com o que ouviu a outros aventureiros. É certo, por exemplo, que não penetrou no interior da China, nem trabalhou na construção da grande muralha, como ele afirma, porque os descobridores portugueses deslocavam-se de barco e abordavam somente as zonas costeiras, ou próximas da costa.
De qualquer modo, a “Peregrinação” é uma inestimável fonte de informação para conhecermos o que sucedia aos navegadores e aventureiros que iam a caminho do extremo-oriente nas caravelas portuguesas, mesmo que nem todas essas coisas tenham acontecido realmente a Fernão Mendes Pinto.
A obra foi desdenhada na época por muitos em Portugal. Um dos motivos foi ter sido publicada só em 1614, 31 anos após a morte do autor, numa ocasião em que a situação tinha mudado muito, nomeadamente com a presença de ingleses e holandeses naquelas paragens, para além de Portugal estar sob o domínio de Espanha. Outro motivo é que vinha fazer concorrência a autores mais recentes e mais eruditos, como João de Barros, Luís Vaz de Camões e Fernão Lopes de Castanheda, e se revelava uma contra-epopeia, pois mostrava o papel dos vilões, dos aventureiros e dos desafortunados das descobertas, em vez de mostrar o papel dos heróis portugueses mitificados em “Os Lusíadas”.
Apesar do relativo fracasso interno, a “Peregrinação” fez muito sucesso em toda a Europa, com várias traduções e edições, por ser uma obra inovadora e representar uma clara mudança nos referenciais da narrativa. O leitor desse tempo já não se contentava com a alegoria medieval. Agora exigia uma factualidade efetiva e comprovável, pois queria ver ele próprio as terras desconhecidas e explorar as suas riquezas. Nesse contexto, a precisão do testemunho ocular tornava-se fundamental, o que Fernão Mendes Pinto fez e foi a razão do grande sucesso desta obra.
A “Peregrinação” é uma obra sempre atual, lendo-se com muito agrado. Não interessa ao leitor do século XXI se Mendes Pinto mente ou fala verdade. O que nos interessa, e me empolgou nesta leitura, são as aventuras narradas, a sua grandiosidade, a sua dose de fantasia. É quase como se fossemos numa viagem espacial a conhecer novos mundos. De facto, não era isso o que os aventureiros daquele tempo faziam e Fernão Mendes Pinto narra tão bem?