O ano da morte de Ricardo Reis
Comentário ao livro “O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS” de José Saramago
Quando li este livro, há já alguns anos, e disse a um amigo que estava a começar a ler "O Ano da Morte de Ricardo Reis", este replicou que tinha sido o livro de José Saramago de que menos gostara, porque o achou muito repetitivo e com uma história que não avançava, acabando por ser uma leitura cansativa. Quando acabei de o ler, fiquei com uma opinião bem diferente.
Todos sabemos que Ricardo Reis era um dos heterónimos mais ativos de Fernando Pessoa. Era médico e poeta, e tinha sido "enviado" pelo seu criador para o Brasil. Sucede que Fernando Pessoa morreu 16 anos depois desse facto. O primeiro ponto de interesse deste livro é Saramago ter pensado se, com a morte do original, as personagens fictícias poderão continuar a existir. À primeira vista, tal não é possível. Mas a imaginação sublime do nosso Nobel não desistiu e resolveu imaginar uma vida de Ricardo Reis para além da morte de Fernando Pessoa.
Sendo Saramago ateu, tal vida só podia ser na Terra, em Portugal e nos espaços mais queridos de Fernando Pessoa. É assim que faz Ricardo Reis regressar a Portugal logo que tem conhecimento da morte do seu original e cria-lhe uma vida fantástica (no sentido de fantasia), em que ele se passeia pelas ruas de Lisboa, desde o Cemitério dos Prazeres onde Pessoa está sepultado, até à Baixa, passando pelo Chiado e o Cais do Sodré. São os lugares da vida e da morte de Fernando Pessoa. Encontra-se várias vezes com ele durante perto de um ano e falam de coisas que os vivos só podem partilhar com os mortos. Até que, como não podia deixar de ser, um dia parte de vez com o seu criador. Não me acusem de estar a fazer ‘spoiler’, pois foi o próprio autor que chamou ao livro "O ano da morte de Ricardo Reis"...
Como se vê, este livro é mais uma incursão de Saramago no mundo do romance histórico, como ele sabia fazer tão bem. Fez-me lembrar a "História do Cerco de Lisboa", outro seu romance em que coloca uma personagem a percorrer bairros históricos da nossa linda capital, neste caso a Mouraria e o Castelo. Saramago descreve os percursos com uma realidade tal que o leitor (sobretudo se, como eu, os conhece) se imagina ao lado da personagem.
Na altura, sugeri à Fundação Saramago e à Porto Editora a realização de passeios temáticos pelas ruas, becos e ruelas descritos nestes dois livros. Não sei se fui ouvido, mas a verdade é que, desde então, têm sido realizados percursos guiados pelos bairros típicos de Lisboa a partir das palavras de José Saramago por empresas que se dedicam a passeios culturais. Quem estiver interessado, pode, por exemplo, consultar o endereço https://passeiosliterarios.com/
Como romance histórico que é, “O Ano da Morte de Ricardo Reis” inicia-se com a morte de Fernando Pessoa, em finais de 1935. A revolução de 28 de maio tinha sido há alguns anos, Salazar já tinha agarrado as rédeas do poder e a ditadura do Estado Novo estendia os seus tentáculos a todas as áreas da Nação. A Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa começavam a ser uma realidade (Ricardo Reis até vai ao Campo Pequeno assistir a uma apresentação de Associações semelhantes de países "amigos"...). A Polícia Política era já o grande suporte do regime e ninguém lhe escapava, como, por exemplo, alguém que apareceu de repente em Lisboa, se passeava pela cidade, aparentava não ter ocupação e metia o nariz em toda a parte, como era o caso de Ricardo Reis. Além disso, havia a guerra em Espanha com as forças de Franco a ganhar força e o crescimento do fascismo na Alemanha e do marxismo na URSS. O perigo de uma confrontação em larga escala era cada vez mais uma probabilidade.
Tudo isto aparece neste romance, descrito ao estilo bem conhecido de José Saramago, que vai introduzindo os acontecimentos ao correr da pena, como por acaso e à medida que calha virem a propósito de qualquer banalidade. O seu jeito irónico para ridicularizar aquilo com que não concorda também está presente neste livro, como seria de esperar.
É, por isso, uma das leituras imprescindíveis da obra de José Saramago, pelo que fiquei contente quando, há uns anos atrás, este livro foi de leitura obrigatória para os alunos do 12º ano. Se este meu comentário puder incentivar jovens e adultos a ler o livro com mais prazer, já valeu a pena.