O Acontecimento
Comentário ao livro “O ACONTECIMENTO” de Annie Ernaux
Annie Ernaux é a mais recente vencedora do Prémio Nobel de Literatura. É uma escritora francesa de que, confesso, nunca tinha ouvido falar, apesar de ter vários livros editados em Portugal. O seu livro mais conhecido é “Os Anos”, que venceu diversos prémios importantes. Mas a sinopse não me convenceu a escolhê-lo para me iniciar na sua escrita, porque me deu a sensação de ser a crónica da sua vida e da sociedade desde que nasceu até escrever esse livro aos 65 anos, baseada em recordações como fotografias, filmes, livros, acontecimentos, etc., ligados especialmente à França, muitos dos quais não me dizem, provavelmente, grande coisa.
Em contrapartida, o tema de ”O Acontecimento” chamou-me logo a atenção e não resisti a começar imediatamente a lê-lo. Não me desiludiu, embora não seja bem o género mais do meu gosto, a autobiografia. Uma grande parte dos escritores famosos passam os últimos anos da sua vida a escrever autobiografias, certamente a pedido dos seus editores, a fim de deixarem no papel a visão pessoal da sua própria vida, normalmente de muito interesse para os seus leitores. Mas não é o caso de Annie Ernaux que escreve assim desde sempre.
Embora os seus livros sejam relatos fiéis de acontecimentos da sua própria vida, são muito mais do que isso. Em cada livro, ela não é um “eu”, mas sim um “nós”. A minha interpretação é que a autora prefere expor-se perante os seus leitores, do que esconder-se atrás de personagens fictícias. Se pensarmos bem, uma grande parte dos romances mais célebres estão muito próximos da experiência de vida dos próprios autores. Annie Ernaux prefere fazer o contrário: contar um episódio acontecido consigo própria, mas que é um exemplo do que aconteceu com muitas outras pessoas na mesma época e no mesmo ambiente social. Reside aqui a maravilha da escrita desta autora que levou o Comité Nobel a escolhê-la, "pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, as estranhezas e os constrangimentos coletivos da memória pessoal".
Na verdade, é necessária muita coragem para pôr a sua vida no papel com a preocupação que Annie Ernaux revela de querer ser fiel ao acontecimento, esforçando-se por recordar os mais ínfimos pormenores, de modo a ser um relato isento de ficção. Mas o interessante é que é exatamente esta preocupação que torna a história tão viva e real, que qualquer um se pode rever nela e a torna numa obra de ficção.
É o caso deste livrinho. “O Acontecimento” é a narrativa extremamente sucinta, mas muito realista de um aborto feito nos anos 60 do século passado. Sou de idade próxima da autora e, nesse tempo, eu era um jovem. Lembro-me perfeitamente de casos como este de adolescentes e jovens (e até mães de família) que eram obrigados a recorrer a “abortadeiras” que toda a gente sabia quem eram, mas ninguém podia oficialmente saber, porque a lei era taxativa e muito violenta para quem fosse apanhado, tanto para quem pedia, como para quem praticava o ato. Muitas mulheres morriam, porque o aborto não era feito nas melhores condições e muitas vezes era feito pela própria grávida, com recurso às famosas agulhas de crochet, a ácidos ou outros meios violentos, por não ter dinheiro para pagar ou para esconder a gravidez da própria família. Em Portugal, a situação arrastou-se ainda mais do que em França, pois a legislação sobre a legalização do aborto é relativamente recente.
“O Acontecimento” passa-se durante o período de cerca de três meses, desde que a jovem estudante universitária se apercebeu de que estava grávida até encontrar uma pessoa que lhe fizesse o aborto. O jovem pai fugiu às responsabilidades, ela não podia deixar que os seus pais soubessem, os estudos ressentiram-se, as e os colegas procuraram não se ver envolvidos, os médicos a que tentou pedir ajuda não colaboraram ou procuraram impedir o aborto. Tentou usar as agulhas, ser violenta no desporto, fazer sexo à bruta, mas nada resultava e o tempo ia passando. Depois de praticado o aborto, esteve à beira da morte e só escapou porque uma colega muito católica, mas muito humana a ajudou a encontrar um médico de bom coração que a encaminhou para o hospital certo e na hora certa. Tudo isto eu me lembro de acontecer naquele tempo a muitas mulheres.
É por isso que esta história não é uma história pessoal da autora, mas o retrato de uma época. Não podemos ver aqui o “eu” de quem a viveu, mas sim o “nós” dos milhões de mulheres que viveram histórias iguais. Há sempre quem critique os critérios da atribuição do Prémio Nobel, mas, mais uma vez, o Comité Nobel descobriu e apresenta ao mundo um processo de escrita inovador que vai ser, certamente, seguido por muitos jovens escritores, se conseguirem ter a mesma força e coragem de Annie Ernaux.