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Os Meus Nobel

Aqui encontra informação sobre a vida e a obra de grandes escritores, galardoados com o Prémio Nobel de Literatura ou não, minhas recensões de livros, textos de minha autoria e notícias literárias

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As Doenças do Brasil

Vibarao, 13.03.22

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“As Doenças do Brasil” de Valter Hugo Mãe

Começo por uma pergunta: este é um livro de poesia ou de prosa? Tenho muitas dúvidas, porque hoje a linha divisória entre estes dois géneros literários é cada vez mais ténue. Quando eu era criança, estudava que a poesia tem métrica, tem rima e tem uma estrutura estrófica. Estudava que a métrica tem regras e a rima tem regras e as estrofes têm regras. Hoje tudo isso está ultrapassado. Há simplesmente linguagem poética e linguagem não poética, ponto!

Com base neste critério, diria que este livro, ao ser folheado, parece prosa; mas lido, juraria que é poesia. Aliás, todos os livros que já li de Valter Hugo Mãe são poesia, vistos por este prisma.

 

“As Doenças do Brasil” gira à volta do caso de uma jovem mulher da tribo Abaeté que foi violada por um branco, abuso de que resultou um filho que vive o drama de não ser como os outros Abaeté. “Honra”, o nome que lhe foi dado, o “feio” como lhe chamam as outras crianças, gostaria de se dividir em dois e destruir a sua parte de branco, ainda que ficasse raquítico ou deficiente. Tudo seria preferível a viver com aquele estigma no seu corpo.

O livro começa com o resultado de uma caçada aos invasores, de que resultou a morte de um branco, abatido pelos guerreiros da tribo. O corpo foi transportado para a aldeia e sujeito às cerimónias de “purificação” tradicionais. A tradição mandava que o espírito dos inimigos abatidos fosse “santificado” através de um conjunto de ritos, de forma a poder ser admitido nas esferas celestiais. A cabeça era cortada e o corpo desmembrado, sendo os ossos separados da carne. Os ossos maiores eram aproveitados para fazer flautas, com as quais produziam os seus cantos de louvor aos “ancestrais”, os antepassados. Cada membro da tribo introduzia uma pequena pedra na boca do morto, enquanto recitava um pedido à divindade em favor da purificação deste. Desta vez, Honra não foi capaz de o fazer; mas o “sagrado Pai Todo”, o chefe da tribo, acabou por o convencer e ele acabou por “entoar” as palavras de ajuda para que o inimigo morto encontrasse o caminho da “encantaria” que o conduziria à “Pedra Que Soa”, a morada dos mortos.

Por alguns dos vocábulos que inseri entre aspas, já se pode começar a ver onde está a dificuldade de ler e entender este livro. Toda a escrita é uma sucessão de metáforas e de formas estranhas de construir o texto. Penso que o autor procurou aproximar-se do modo de falar dos índios americanos, nomeadamente desta tribo dos Abaeté que vivia junto ao rio que hoje se chama rio Abaeté e fica no Estado de Minas Gerais no Brasil. Ou talvez Valter Hugo Mãe tenha procurado encontrar uma forma de expressão mais adequada ao ritmo da narrativa, através de uma sintaxe adaptada e utilização de termos poucos usuais na linguagem comum ou mesmo substituídos por outros que não são usados com esse significado. Por exemplo, o termo “entoa” significa “diz” e não canta, como é usual; quando diz “entoa fala de abrigo”, quer dizer que desabafe, que diga o que o está a fazer sofrer.

Outra característica digna de nota é o nome dado às pessoas, o que, embora seja usual nas tribos indígenas, tem aqui um significado simbólico e nos dá um primeiro retrato do seu possuidor. Já falei de Honra, o jovem mestiço, cujo nome nos mostra logo que o seu destino está em lavar a sua honra e a honra de sua mãe, chamada “Boa de Espanto”. A certa altura, aparece na aldeia um negro fugitivo (os chamados “fujões”, cuja recaptura era um ponto de honra para os donos das roças), que ficou apelidado de “Meio da Noite”; este Meio da Noite veio a ter um papel importante como companheiro de Honra na sua tentativa para encontrar e “caçar” o seu pai branco.

Há outras peculiaridades que é preciso conhecer. Quando uma palavra é pronunciada no superlativo absoluto simples, estamos perante algo de superior (a “Verdadeiríssima Divindade”, por exemplo) ou algo de definitivo (como a “verdadeiríssima morte”, por exemplo). Todos os adultos da tribo se tratavam por “sagrados”: “sagrada mãe”, “sagrado pai”, “sagrado Honra”, “sagrada Lua Interior”, “sagrado Altura Verde”, etc. Os homens são os “guerreiros” e as mulheres são as “femininas”; os idosos são os “maduros”; os adultos são os “opacos” e os jovens são os “transparentes”; os meninos são os “curumins” e as meninas são as “curatãs”.

Quero também referir que aparecem muitos nomes de animais e plantas autóctones da zona onde se situa o enredo. Recorri diversas vezes ao dicionário, porque são nomes de que nunca tinha ouvido falar, confesso a minha ignorância.

Convém também estar alertado para o facto de as falas no discurso direto serem introduzidas num parágrafo que começa por letra minúscula. Faço agora uma pequena citação que mostra não só esta característica da escrita, mas também outras que já citei. É um diálogo entre Honra e Meio da Noite na maloca (a cabana) onde ambos dormiam, por ocasião da aparição deste:

E o negro entoou:

     sagrado Honra, se entendi o que aconteceu, se por acaso me salvaram, quero que saibas que estou grato. (…)

O branco perguntou:

     o que significas com isso.

E o negro respondeu:

     obrigado, sagrado Honra. A minha vida dignifica meu pai, minha mãe, meus avós, meus irmãos, meus povos.

Honra perguntou:

     estás a chorar, animal negro.

E o negro entoou:

     sim.

Então Honra chorou também. As feras eram incapazes de chorar. No sol (dia) seguinte, até (ainda) estupefacto, o guerreiro branco foi declarar ao pajé (chefe da aldeia) que o negro era alguém (uma pessoa). Entoou:

     é alguém, sagrado Pai Todo, intuí seu espírito. Eu intuí. (Pág. 118).

Espero que, depois das minhas explicações, tenham entendido esta citação e perdido o receio de ler este livro. A linguagem utilizada do Valter Hugo Mãe e a sua escrita de cariz poético, que é habitual nos seus livros, pode amedrontar alguns leitores. Mas não devem cair nessa tentação, porque só custa nas primeiras páginas. É como os livros de José Saramago: depois de perceber a mecânica, torna-se fácil. E este livro vale mesmo a pena ser lido, porque é uma denúncia das “doenças” que os brancos europeus levaram para o Brasil e outras regiões da América, doenças talvez mais morais, culturais, religiosas, humanitárias e ambientais, do que propriamente as doenças físicas, que continuam a ser chagas abertas nos cidadãos de origem ameríndia e negra desses países.

 

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