A Peste
Comentário ao livro “A PESTE” de Albert Camus
Eu, pecador, me confesso! Para mal dos meus pecados, declaro que este é o primeiro livro que li de Albert Camus, apesar de ter na minha biblioteca nada menos do que doze obras deste monstro das letras, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1957.
Dizem os estudiosos da obra de Camus que leitor que se preze não pode deixar de ler "O Estrangeiro" (1942), "A Peste" (1947) e "A Queda" (1956). Ficam, pois, a faltar-me duas leituras para conhecer o essencial deste escritor franco-argelino.
Como o nome indica, o tema deste livro é uma epidemia que surgiu na cidade de Orão situada na zona oeste na Argélia, junto à costa do Mediterrâneo, já perto de Marrocos, num ano dos inícios da década de 40 do século XX. Tudo terá começado quando um rato a sangrar pela boca vem morrer aos pés do Dr. Bernard Rieux, médico, no corredor do prédio onde este residia, facto que o porteiro desvalorizou.
Nem o aparecimento de mais três ratos nas mesmas circunstâncias o convenceram de que algo de estranho se passava. No entanto, começaram a aparecer cada vez mais ratos mortos e nos mais variados locais da cidade. Dois dias depois, os ratos mortos eram às centenas e duas semanas depois eram aos milhares por dia. Mas, tão depressa como começou, a invasão de ratos mortos terminou. O problema é que, simultaneamente, começaram a apareceu pessoas com estranhos inchaços espalhados pelo corpo, febres altas, vómitos e delírios. A princípio raros, brevemente os casos cresceram exponencialmente. Avisadas pela classe médica, as autoridades começaram por desvalorizar a situação, mas rapidamente foram forçadas a reconhecer que se tratava de uma epidemia desconhecida para a qual não havia tratamento e começaram a ser tomadas as medidas adequadas à situação. Estando nós a braços com uma situação semelhante, não é necessário debruçar-me sobre estas medidas: cerca sanitária, encerramento das escolas, proibição de atividades que envolviam grandes ajuntamentos de pessoas, incluindo os funerais, quarentena, criação de hospitais de campanha, etc. Tal como na presente situação, uns aceitaram as ordens, mas outros tentaram resistir, incluindo tentativas de furar o cerco; negócios fecharam e outros nasceram; houve gestos de grande humanidade e outros de grande egoísmo.
Certo é que, depois de ter morrido uma grande parte da população, dez meses depois a epidemia extinguiu-se. Como se festejou o fim do confinamento e a abertura da cidade ao exterior? Mas, mais importante, aprendeu-se alguma coisa? O que mudou nos hábitos das pessoas?
"A Peste" foi a obra de consagração do autor, que o lançou nas esferas da literatura internacional. Na verdade, é um prazer ler este livro, pela forma como a trama está construída, pela caracterização brilhante das personagens e das situações. No final, ficamos na memória com personagens inesquecíveis, como o Dr. Rieux, Tarrou ou Grand. Até outras menos simpáticas, como Paneloux, Cottard ou Rambert foram heróis à sua maneira. Mas será que, passada a aflição, a cidade será capaz de reconhecer os seus heróis?
Diz quem sabe que este livro, escrito durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto a França estava ocupada pelas tropas alemãs, é uma alegoria ao nazismo. Parece ter sido msmo essa a intenção do autor ao fazer constar na entrada a seguinte citação de Daniel Defoe: "É tão razoável representar uma espécie de encarceramento por uma outra como representar qualquer coisa que realmente existe por qualquer coisa que não existe." Na verdade, que pior peste poderia ter caído sobre a França do que aquela Guerra com todos os horrores que são conhecidos?
Para terminar, não posso deixar de citar o desabafo do Dr. Rieux, perante os gritos da multidão em festa:
"Rieux lembrava-se de que esta alegria estava sempre ameaçada. Porque ele sabia o que esta multidão eufórica ignorava e se pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e na roupa, espera pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. E sabia também que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acordaria os seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz."
Aplica-se à situação sanitária que o mundo atravessa neste momento, mas talvez ainda com maior veemência à situação política e económica que a acompanha, ou, quem sabe, que a provocou. Talvez os ratos da peste já tenham começado a acordar há alguns anos...
Comentário escrito em 10 de julho de 2020